[Notícia] A rotina de uma rádio no caos de Mogadíscio na Somália/África
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[Notícia] A rotina de uma rádio no caos de Mogadíscio na Somália/África
MOGADÍSCIO, Somália – Com um véu na cabeça, uma jornalista (que também está vestindo uma justa saia jeans) senta-se num estúdio com isolamento acústico tendo um microfone em frente a seu rosto.
“Salaam aleikum” [cumprimento comum dos povos árabes, significa: que a paz esteja convosco], diz ela, cumprimentando um homem que ligou para a rádio.
“Sim, olá”, responde inquieto seu interlocutor. “Eu gostaria de falar sobre os piratas, eles não estão sendo bem tratados”.
No estúdio vizinho, produtores preparam as notícias diárias do caos: três corpos foram encontrados no mercado de Bakaro, o presidente Sheik Sharif prega reconciliação em uma mesquita, estudiosos islâmicos comentam amputações de mãos pelo grupo insurgente Al-Shabaab, o mercado de ações está em alta e o preço das cabras, graças a Deus, não para de aumentar.
Bom dia… Mogadíscio!
Este é um dia típico na Rádio Mogadíscio, a única rádio relativamente livre no sul da Somália onde jornalistas podem transmitir o que desejam – sem se preocuparem em serem decapitados. As antenas de trinta metros da estação, que se erguem acima dos escombros da vizinhança, tornaram-se um símbolo de liberdade para os repórteres, editores, técnicos e DJs de toda da Somália que foram expulsos de seus empregos por grupos islâmicos radicais.
Quem quer que controle Mogadíscio, controla também a rádio. E desde que a estação foi inaugurada, em 1951, isso significou administradores italianos elegantemente vestidos, um governo democrático de curta duração, um ditador militar, vários senhores da guerra e criminosos diversos, xeiques islâmicos e agora um fraco, porém internacionalmente reconhecido, governo de transição que não tem controle sobre a capital, mas está sediado no alto do bairro onde a estação também se encontra.
Os aproximadamente cem funcionários da Rádio Mogadíscio são homens e mulheres perseguidos na cidade porque os grupos insurgentes os associam ao governo. Os jornalistas comem e dormem aqui e raramente se aventuram no lado de fora. A maioria recebe apenas algumas centenas de dólares por mês. Alguns, como o experiente correspondente político da estação, Abdi Aziz Mahamoud Africa, caminham pelo prédio vestindo jeans e camiseta, um estilo ocidental que pode significar a morte em outras partes da cidade.
Um pelotão de soldados de Uganda, parte da missão de paz da União Africana, está entrincheirado atrás de sacos de areia no portão da estação com seus fuzis apontados para o labirinto de ruas e casas destruídas do lado de fora. Poucas pessoas sequer ainda vivem por aqui. A Somália se tornou um dos lugares mais perigosos do mundo para praticar jornalismo, com mais de vinte repórteres assassinados nos últimos quatro anos. “Nós sentimos falta deles”, disse o senhor Africa, sobre seus colegas.
Ele largou um sorriso constrangido quando indagado a respeito de seu nome. “É porque eu sou escuro, muito escuro”, disse.
Mahamoud Africa costumava trabalhar em uma das outras estações de rádio da cidade (ela são mais de 10), mas decidiu se mudar depois que combatentes do Shabaab chegaram e começaram a ameaçar de morte jornalistas que não emitissem reportagens em favor do grupo. Mahamoud Africa chama esses membros intrometidos do Shabaab de “editores secretos” e desde então ele carrega uma arma.
“Eu tentei convencer os outros jornalistas a comprarem revólveres”, relembra Mahamoud Africa. “Mas ninguém me deu ouvidos”.
Outro repórter, Musa Osman, diz que sua casa fica a apenas a 800 metros dali. “Mas não vejo meus filhos há meses”, disse.
Ele passou seus dedos no pescoço e deu uma risada amarga quando perguntado o que aconteceria se fosse para casa.
A maioria dos jornalistas dorme sobre finos colchões em quartos de concreto ainda exposto. A própria estação está em estado de desintegração, com marcas de bala de todo o país, que tem sido ingovernável por quase duas décadas.
Um dos edifícios do complexo é um amontoado de escombros. “Black Hawk Down” [Falcão Negro em Perigo, título do filme na versão brasileira; Cercados, na sua versão portuguesa], explica um jovem jornalista, beirando o orgulho. Ao que tudo indica, o edifício foi bombardeado em 1993, quando a estação era dirigida pelo general Mohammed Farah Aidid, notório senhor da guerra somali cujos milicianos combateram contra as tropas estadunidenses em uma interminável luta urbana que foi posteriormente imortalizada pelo livro e filme, “Black Hawk Down”.
A foto de Mohammed Aidid, bonachão e de bigode, ainda está na parede, juntamente com a fotografia em tons de sépia do último ditador somali, o general Mohammed Siad Barre. Perto se encontra uma velha tabela de horários de voos de companhias somalis, sob o título “The White Star Service”. A White Star não voa há anos.
Numa cidade onde incessantes tiros de pequeno calibre reduziram praticamente todos os monumentos, bibliotecas e locais dignos de nota a pilhas de concreto, a Rádio Mogadíscio pode ser um dos últimos depósitos históricos da Somália. Num quarto escuro nos fundos, além de antigos toca-discos e alto-falantes, estão guardados quilômetros fitas de áudio em armários de três metros de altura que vão do chão ao teto. Elas estão cuidadosamente catalogadas: discursos antigos, canções folclóricas, canções patrióticas, entrevistas com nômades e outras lembranças de uma cultura ameaçada. Toda semana, retira-se a poeira de algumas fitas e elas são tocadas num programa chamado “Recordar”.
“Este lugar é um tesouro cultural, acredite ou não”, disse Mukhtar Ainashe, assessor presidencial.
A ONU está tentando ajudar os somalis a converter os rolos de fita em CD antes que a umidade e o tempo os destruam. O governo somali também está injetando recursos, como um novo transmissor que irá expandir a área de cobertura de alguns quilômetros para quase cem. Isso porque a Rádio Mogadíscio é tida como uma peça-chave na estratégia de conquistar corações e mentes para o lado do governo.
Entretanto, os jornalistas aqui insistem em dizer que não são meros agentes de relações públicas. Eles transmitem discursos de líderes insurgentes, dizem eles, e histórias de soldados do governo roubando cidadãos.
“Se o governo faz algo ruim”, disse Mahamoud Africa, “nós relatamos”.
Jeffrey Gettleman
Tradução de Gustavo Müller
Fonte: Correio Internacional
“Salaam aleikum” [cumprimento comum dos povos árabes, significa: que a paz esteja convosco], diz ela, cumprimentando um homem que ligou para a rádio.
“Sim, olá”, responde inquieto seu interlocutor. “Eu gostaria de falar sobre os piratas, eles não estão sendo bem tratados”.
No estúdio vizinho, produtores preparam as notícias diárias do caos: três corpos foram encontrados no mercado de Bakaro, o presidente Sheik Sharif prega reconciliação em uma mesquita, estudiosos islâmicos comentam amputações de mãos pelo grupo insurgente Al-Shabaab, o mercado de ações está em alta e o preço das cabras, graças a Deus, não para de aumentar.
Bom dia… Mogadíscio!
Este é um dia típico na Rádio Mogadíscio, a única rádio relativamente livre no sul da Somália onde jornalistas podem transmitir o que desejam – sem se preocuparem em serem decapitados. As antenas de trinta metros da estação, que se erguem acima dos escombros da vizinhança, tornaram-se um símbolo de liberdade para os repórteres, editores, técnicos e DJs de toda da Somália que foram expulsos de seus empregos por grupos islâmicos radicais.
Quem quer que controle Mogadíscio, controla também a rádio. E desde que a estação foi inaugurada, em 1951, isso significou administradores italianos elegantemente vestidos, um governo democrático de curta duração, um ditador militar, vários senhores da guerra e criminosos diversos, xeiques islâmicos e agora um fraco, porém internacionalmente reconhecido, governo de transição que não tem controle sobre a capital, mas está sediado no alto do bairro onde a estação também se encontra.
Os aproximadamente cem funcionários da Rádio Mogadíscio são homens e mulheres perseguidos na cidade porque os grupos insurgentes os associam ao governo. Os jornalistas comem e dormem aqui e raramente se aventuram no lado de fora. A maioria recebe apenas algumas centenas de dólares por mês. Alguns, como o experiente correspondente político da estação, Abdi Aziz Mahamoud Africa, caminham pelo prédio vestindo jeans e camiseta, um estilo ocidental que pode significar a morte em outras partes da cidade.
Um pelotão de soldados de Uganda, parte da missão de paz da União Africana, está entrincheirado atrás de sacos de areia no portão da estação com seus fuzis apontados para o labirinto de ruas e casas destruídas do lado de fora. Poucas pessoas sequer ainda vivem por aqui. A Somália se tornou um dos lugares mais perigosos do mundo para praticar jornalismo, com mais de vinte repórteres assassinados nos últimos quatro anos. “Nós sentimos falta deles”, disse o senhor Africa, sobre seus colegas.
Ele largou um sorriso constrangido quando indagado a respeito de seu nome. “É porque eu sou escuro, muito escuro”, disse.
Mahamoud Africa costumava trabalhar em uma das outras estações de rádio da cidade (ela são mais de 10), mas decidiu se mudar depois que combatentes do Shabaab chegaram e começaram a ameaçar de morte jornalistas que não emitissem reportagens em favor do grupo. Mahamoud Africa chama esses membros intrometidos do Shabaab de “editores secretos” e desde então ele carrega uma arma.
“Eu tentei convencer os outros jornalistas a comprarem revólveres”, relembra Mahamoud Africa. “Mas ninguém me deu ouvidos”.
Outro repórter, Musa Osman, diz que sua casa fica a apenas a 800 metros dali. “Mas não vejo meus filhos há meses”, disse.
Ele passou seus dedos no pescoço e deu uma risada amarga quando perguntado o que aconteceria se fosse para casa.
A maioria dos jornalistas dorme sobre finos colchões em quartos de concreto ainda exposto. A própria estação está em estado de desintegração, com marcas de bala de todo o país, que tem sido ingovernável por quase duas décadas.
Um dos edifícios do complexo é um amontoado de escombros. “Black Hawk Down” [Falcão Negro em Perigo, título do filme na versão brasileira; Cercados, na sua versão portuguesa], explica um jovem jornalista, beirando o orgulho. Ao que tudo indica, o edifício foi bombardeado em 1993, quando a estação era dirigida pelo general Mohammed Farah Aidid, notório senhor da guerra somali cujos milicianos combateram contra as tropas estadunidenses em uma interminável luta urbana que foi posteriormente imortalizada pelo livro e filme, “Black Hawk Down”.
A foto de Mohammed Aidid, bonachão e de bigode, ainda está na parede, juntamente com a fotografia em tons de sépia do último ditador somali, o general Mohammed Siad Barre. Perto se encontra uma velha tabela de horários de voos de companhias somalis, sob o título “The White Star Service”. A White Star não voa há anos.
Numa cidade onde incessantes tiros de pequeno calibre reduziram praticamente todos os monumentos, bibliotecas e locais dignos de nota a pilhas de concreto, a Rádio Mogadíscio pode ser um dos últimos depósitos históricos da Somália. Num quarto escuro nos fundos, além de antigos toca-discos e alto-falantes, estão guardados quilômetros fitas de áudio em armários de três metros de altura que vão do chão ao teto. Elas estão cuidadosamente catalogadas: discursos antigos, canções folclóricas, canções patrióticas, entrevistas com nômades e outras lembranças de uma cultura ameaçada. Toda semana, retira-se a poeira de algumas fitas e elas são tocadas num programa chamado “Recordar”.
“Este lugar é um tesouro cultural, acredite ou não”, disse Mukhtar Ainashe, assessor presidencial.
A ONU está tentando ajudar os somalis a converter os rolos de fita em CD antes que a umidade e o tempo os destruam. O governo somali também está injetando recursos, como um novo transmissor que irá expandir a área de cobertura de alguns quilômetros para quase cem. Isso porque a Rádio Mogadíscio é tida como uma peça-chave na estratégia de conquistar corações e mentes para o lado do governo.
Entretanto, os jornalistas aqui insistem em dizer que não são meros agentes de relações públicas. Eles transmitem discursos de líderes insurgentes, dizem eles, e histórias de soldados do governo roubando cidadãos.
“Se o governo faz algo ruim”, disse Mahamoud Africa, “nós relatamos”.
Jeffrey Gettleman
Tradução de Gustavo Müller
Fonte: Correio Internacional
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