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Relembrando meu pai

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Mensagem por Luiz Cruz 08/08/08, 08:13 pm

ATÉ UM DIA PARA O MEU PAI


Ele sempre foi muito inquieto. Fala grave e precisa. Nenhum dos filhos se distraía perante sua ordem: “- Vou cuspir no chão, antes que ele seque quero você de volta com a obrigação cumprida”, notificava ele. E lá íamos nós, acelerados. Uma das características dos meus irmãos, quando criança, era “andar correndo”. Não cabia cochilo. Mas meu pai era também cômico e apaixonado. Acho que herdei isso dele. Adorava canções sertanejas. Acordava cedo, ligava o rádio por volta das 3 horas da manhã. Sintonizava a Rádio Capital. O locutor era o Zé Béttio. Lembro até hoje. Quando se aproximava às 6 horas da manhã mandava jogar água nos que perderam a hora para o trabalho. Meu pai ria, mas levantava cedo. Zé Béttio continuava sua programação até às 7 horas da manhã, para o desespero dos preguiçosos.
Eu gostava do fato do meu pai acordar cedo. Eu sempre sofri de insônia, desde que me entendo por gente. Quando o meu pai madrugava e ligava o rádio eu me tranqüilizava. Muitas vezes ficava ansioso aguardando às 3 horas da manhã para sair daquela solidão noturna e sentir presente sinais de vida. O rádio ligado me acalmava. Costumava até dormir após esta amistosa presença. Creio que é por isso que cultivei certo gosto pela música sertaneja.
Ele era muito agitado, ia e vinha da sala à cozinha, da cozinha ao quarto. Escutava o barulho de seus passos firmes batendo contra o assoalho da casa. Abria a porta da rua para ver quem seria o primeiro a levantar-se e sair para o trabalho. Cidade pequena, todo mundo conhecendo todo mundo. Quando passava alguém, cumprimentava e corria até ao quarto para anunciar a minha mãe: “- O compadre Fulano acabou de passar”. Minha mãe confirmava ainda embriagada pelo sono: “- Éh!” Cansada de suas agitadas idas até a porta da rua e retorno ao quarto, ela se levantava para fazer-lhe o café da manhã. Preparava-lhe numa frigideira uma boa porção de feijão com um ovo frito. Ele tomava aquela refeição e um bocado de café e saía, pelas 5 horas da manhã para o trabalho. Minha mãe continuava os seus afeitos, preparando algo para os meninos comerem quando se levantarem da cama. Por volta das 6 horas da manhã todos tinham de estar de pé, faça frio ou faça calor.
Meu pai cumpria sua tarefa do dia. Trabalho duro. Tinha que chegar bem cedo para acender o fogo da caldeira da fábrica de queijo onde trabalhava. Feito isso, logo começavam a chegar os leiteiros com suas cargas de leite. A maioria dos animais de carga era burros e mulas que traziam, frequentemente, duas latas com 40 ou 50 litros de leite cada uma. O leite era colocado em grandes bacias, onde, com o vapor que a caldeira produzia, era aquecido para, em seguida, ser levado a outra bacia e ali o queijo ser preparado.
Eu devia ter uns 10 anos quando meu pai me procurou para ser o leiteiro de um dos seus compadres e amigos. Fiquei angustiado, pois nunca tinha saído de casa sozinho para longe e ainda mais para uma roça. Quem me levou foi meu irmão, o Caco. Safado “todo tanto”, mas nesse dia foi muito solidário. Sabia do meu aperto e tinha que me mostrar o caminho. Fomos juntos e a pé, pela estrada. Um monte de encruzilhadas. Ele me chamava atenção para os detalhes: casas, árvores, cupins, porteiras... Mas minha ansiedade não deixava gravar quase nada. Era eu quem teria que ficar longe de casa. Chegamos à fazenda. Há uns doze quilômetros de casa. Para uma criança era muito longe. Descobri que o leiteiro dele estava doente: caxumba. Era um garoto bem maior que eu. Teria que substituí-lo. Meu irmão me deixou lá e voltou para casa. Fiquei num mundo estranho pela primeira vez. O dono da fazenda morava sozinho. Sua esposa e filhos ficavam na cidade. Aos meus olhos naquela época a casa era enorme, sombria, assustadora. Ele me recebeu risonho e foi me orientando sobre as tarefas. Havia duas vantagens em sua casa: a comida era muito boa e tinha banheiro dentro da residência. Sendo assim eu não precisaria sair à noite caso houvesse apertos. A fazenda não tinha luz elétrica. Eu que já não dormia com facilidade, mas em casa tinha a segurança de dividir o quarto com mais três irmãos, agora precisaria ficar sozinho, assustado com a chegada da noite. Logo o crepúsculo anunciava seu advento. Jantamos e fomos dormir. Ele, com uma velha lamparina na mão, deixou-me num quarto já arrumado pela sua empregada e seguiu para os seus aposentos com a sua lamparina acesa. Apagou a chama daquele luzeiro que mantinha um acanhado brilho sombrio entre os quartos e foi dormir. Tudo ficou escuro, o quarto muito grande e eu ainda sem sono. Precisava me preparar para uma noite sem fim. Assim foram quase todas as noites passadas ali. Foi um tempo onde eu não podia contar com a alvorada da Rádio Capital.
Até que o dia amanheceu. Eram 4 horas da manhã. Tive que subir o pasto para buscar as vacas leiteiras. Era mês de julho. O frio cortava a carne do corpo. Fruto de lobo era muito. Aqueles pequenos arbustos que davam uns frutos do tamanho de uma maçã, mas seus galhos e folhas eram abastecidos de espinhos. Quando essas folhas caíam no chão formavam um tapete desses espinhos e eu andava descalço. Assim andava a maioria dos meninos daquela região. Trazia as vacas até o curral, onde um vaqueiro tirava-lhes o leite, que era colocado em duas latas de metal e, em seguida, no lombo de uma égua mansa e cargueira. Montei pela primeira vez na garupa de uma égua e peguei a estrada. Até certo ponto acreditava estar caminhando impecável. Mas chegou um momento que duvidei. Então peguei as rédeas e quis orientar minha égua que só aceitava a direção que estava acostumada. Entrei em pânico com mais de 80 litros de leite para serem entregues a tempo na fábrica de queijo e a égua tomando a direção duvidosa. Eu era incapaz de conduzi-la corretamente. Chorei angustiado. Até que, há certa altura encontrei um senhor que vinha na direção oposta. Pedi-lhe informações:
- O senhor pode me dizer se esse é o caminho correto que me leva até a fábrica?
- Pode ficar tranqüilo menino, afirmou ele. Esse é o caminho e a sua égua já o sabe de cor. Confia nela, acrescentou risonho e confiante.
Foi quando me acalmei, descobri que não havia gravado o caminho e minha égua já me perdoara. Nunca me senti tão feliz ao chegar a minha cidade como naquele dia. Tinha passado uma noite fora. Muitas outras teriam que acontecer, mas dessa vez foi muito bom passar em casa e ver minha família: meus irmãos, minha mãe, o meu espaço...
Quando cheguei à fábrica meu pai veio ao meu encontro. Estava com um ar de preocupação. Queria saber se eu estava bem. Nunca havia me sentido tão seguro ao lado do meu pai quanto naquele dia. Perguntou se tive dificuldades e como eu estava. Senti que sua pergunta vinha acompanhada de muita ansiedade. Menti. Disse que estava bem e que tinha sido tudo muito fácil. Mas ele sabia que não. Tratou de me atender o mais rápido possível. Lavou as latas depois de medir o leite e despeja-lo na bacia, ajeitou a carga e me despediu para, de volta à solidão, dar continuidade aquele tempo difícil. Fiquei nessa luta durante uns longos dois meses, até que o outro garoto melhorou. Sabendo da minha difícil adaptação à fazenda, o fazendeiro nesse dia quis me surpreender. Já era tardinha. Ele foi ao meu encontro e me perguntou se eu me sentiria feliz se ele me levasse de volta a minha casa. A alegria foi tanta que não dei conta de dar respostas.
Meu pai retornava do serviço até às 4 horas da tarde. Cidade pequena, tudo era muito perto, até o lugar onde ele trabalhava. Durante o almoço adorava contar os seus causos para minha mãe. Lembro, entre tantos, de um que contou enquanto almoçava. Falava de um causo que seus amigos de trabalho contaram entre eles naquela manhã. Um deles conta que estava pescando numa tarde e nada pegava. Somente uns mosquitinhos e um bando de pernilongos para incomodar. Até que apareceu um tiziu. Aqueles passarinhos de plumagens preto-azuladas, com manchas subaxilares brancas da espécie “volatinia jacarina”. Quando pousa num lugar, para cantar precisa dar um salto. Sua melodia é o seu nome: “- Tiziuuuuu!”. Esse pousou na ponta da vara de pesca do companheiro deixando-o irritado. Há horas não pescava nada, só a perturbação dos insetos no ouvido. Agora aquele tiziu, fazendo a maior festa no seu anzol. Cantava e pulava. Até que o pescador teve uma inusitada idéia. Quando o pássaro pulou para cantar, puxou fora a vara de pesca. Isso para o meu pai não podia ser melhor. Há sempre alguém que pergunta: - E o que aconteceu ao tiziu?
Meu pai se divertia com essas pequenas histórias. Gostava de ouvi-lo reconta-las à minha mãe. Seu riso pagava os seus contos, sendo ou não tão engraçados como ele desejava. Minha mãe retribuía com um riso discreto. Acho que ela, enfrentando dias penosos na educação dos muitos filhos, não tinha como dar atenção a tudo que lhe era contado, mas apaixonada pelo meu velho pai, sempre arrumava um jeito de agradá-lo.
Terminado o dia de trabalho, meu pai arrumava alguma distração vendo o quintal, a criação de porcos, o paiol, a horta... Adorava perder tempo com essas coisas. Mas sua paixão eram os passarinhos de estimação. Amava apreciar seus cantos. Assoviava próximo à gaiola para ouvir a resposta do pássaro. Seus pássaros, seu deleite. Quando a noite parecia aproximar-se ia ao encontro dos amigos. Adorava contar seus causos e ouvir as novas piadas do dia, até voltar para casa quase sonolento.
As noites eram muito sombrias, não tinha chegado ainda a eletricidade. Duas lamparinas davam conta de iluminar toda a casa que se compunha de cinco quartos, uma sala e cozinha. Um desses luzeiros ficava sempre na cozinha, fundo da casa, onde todos permaneciam reunidos até a hora de dormir. Ali minha mãe preparava o jantar e esquentava a água no fogão à lenha para o banho dos meninos. À noite só lavávamos os pés, pois já tínhamos tomado banho mais cedo. A outra lamparina ficava de reserva e apagada, para depois do jantar as meninas maiores estenderem as camas. Meu pai, quando chegava da rua, gostava de ficar na sala escura ouvindo seu sertanejo. Era sempre a Rádio Capital – Linha Sertaneja Classe A, com o Zé Russo. Adorava ouvir aquelas vinhetas: - Fala Zé!, dizia o Zé Bettio. Zé Russo respondia: - Falo, falo sim. E dava seqüência à programação. Ali se apresentavam várias duplas sertanejas. Eram aqueles rádios à pilha, de válvulas. Muitas vezes, por curiosidade, abri aquela tampa traseira para encontrar em meio àquelas válvulas alguma pessoa que estivesse falando todas aquelas coisas. Meu pai me dava broncas quando me pegava em flagrante.
Quando ainda não tínhamos rádio, em tempos mais distantes, havia um costume curioso que até hoje não me esqueço. Eu devia ter muito pouca idade, talvez uns 5 anos ou menos. Não sei se meu pai sabia rezar, mas conservava guardada em seu quarto uma imagem de Nossa Senhora do Carmo. À noite costumava reunir o punhado de filhos que até então tinha, e puxava a reza do terço. Um altar era preparado numa velha cadeira que era forrada com um pedaço de pano branco. Ali ele mesmo colocava a imagem da santa, ao seu lado uma lamparina e iniciava a oração. Nós crianças sentávamos no chão. Lembro que aquela imagem caiu muitas vezes por causa das nossas estripulias. Muitas vezes também meu pai a mandou para ser consertada. Recordo vê-la toda cheia de emendas, mas nossas artes não derrotavam aquela devoção por Nossa Senhora e o respeito dedicado àquela pequena imagem.
Os anos passaram e os filhos cresceram. Os tempos mudaram tudo. Aquela simples devoção à Santa ficou como memória dos bons tempos. O rádio também. Os filhos começaram a casar-se e meu pai aposentou. Precisou arranjar alguma coisa para distrair o tempo e não cair na rotina depressiva de muitos que deixaram o trabalho, mas um problema de saúde o levou muito pouco depois da aposentadoria. Merecia uma temporada mais longa, mas esse foi o tempo que lhe foi dado. Viveu como pôde. Sua vida foi cheia de histórias, lágrimas, risos. Agora desejo que esteja em paz. Agradeço por ter me educado para a vida muito cedo. Que ao lado do Criador esteja articulando novos causos vividos nessa nova experiência de eternidade. Um dia quero rir com ele, de suas histórias.

Hoje é dia dos pais. Lembramos uma presença em nosso lar que faz muita diferença: nos trás segurança, firmeza, respeito, honra... Celebre esse dia. Você que é filho e filha não deixe de amar o seu pai. Você que é pai seja pai. Seja feliz.





Luiz Cruz


Última edição por Luiz Cruz em 09/08/08, 04:55 pm, editado 3 vez(es)
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Mensagem por Hi-Tech 08/08/08, 08:18 pm

Muito bom , e hoje é dia 8/8/8 :D
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Mensagem por Luiz Cruz 08/08/08, 08:30 pm

Hoje, 8 de agosto, meu pai completaria 70 anos. Foi embora há pouco tempo, jovem. Doença traiçoeira chegou sem ser convidada. Quero que ele esteja bem.
A todos os pais: FELIZ DIA DOS PAIS!

A você filho e filha, meu abraço ao seu pai.
Fraternalmente,


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Mensagem por Hi-Tech 08/08/08, 08:41 pm

Muito obrigado e meu pai agradece , Tambem desejo o mesmo para todos
:cheers:
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